voar

Uma vida pousou em mim

Despertei do silêncio do espírito mal acomodado
Meti a cabeça entre as cortinas, constatei o que vinha de fora
As árvores nuas, os pássaros nos vãos dos telhados
Pegadas de seres com pressa de chegar a lugar algum no branco das calçadas
Um sopro da leveza de saber de que nada adianta saber de nada

Pus os sapatos, passei o café, olhei-me no espelho, estava velho
As possibiblidades de ser quem realmente sou tinham morrido uma a uma
No reflexo dos meus olhos cansados de verem o mundo e as coisas

Bati a porta, saí tencionado a sentir-me parte do que me envolvia
Desci à rua para mais um infinito de histórias que talvez viveria
Muitas apenas como um vislumbre fugaz ao longe, como uma memória partida
Outras que não seriam senão imaginações daquilo que poderiam ter sido
Tantas outras que, mesmo efêmeras, sem verbo, deixariam um átomo de paixão
Todas valiam a pena e por isso fui, porque valiam a pena

Quando de repente me peguei enchendo de água o côncavo das mãos
Por avistar um passarinho assustado, que tentava voar mas que não saía do chão
Com o tempo ele aproximou-se, e então estiquei os braços na sua direção

Uma vida pousou em mim, banhou-se, olhou-me, cantarolou
E voou