Matemática, filosofia e a morte dos desejos

Quantas vezes você já ouviu falar que a matemática está em todo lugar? Que ela explica tudo, ou quase tudo? Que a matemática é a linguagem da natureza do universo? Ou que a gente não vive mais sem ela? Eu já cansei de ouvir esses e muitos outros subtipos de afirmações. Mas vou tentar explicar brevemente por que vejo as matemáticas como um dos mais convincentes indícios da decadência do pensamento humano.

Há presença de tecnologia matemática em praticamente todas as localidades das grandes sociedades de produção e de consumo historicamente construídas. A estrutura do pensar matemático foi uma das grandes transformadoras da humanidade. Os povos egípcios [2500 até 320 a.C.] e os babilônicos [1800 até 600 a.C.], por exemplo, já utilizavam algum tipo de matemática para fins comerciais. Tem um milhão de exemplos. Contudo, no nosso caso, a Grécia antiga é o grande divisor de águas.

Houve uma multidão de matemáticos por lá. Provavelmente você já ouviu falar de Pitágoras, Euclides ou Arquimedes. Outro, porém pouco conhecido, foi Eudoxo: ele é notadamente reconhecido como o precursor da filosofia do cálculo integral. Isso mesmo!, aquele mesmo cálculo que assusta muitos estudantes de engenharia hoje em dia. Pois é, 400 a.C. e a ideia já existia, o que faltava era o formalismo necessário para transformá-la em linguagem simbólica consistente e tratável. No século 17, Leibniz e Newton, principalmente, deram conta de boa parte do recado. Desde então, o cálculo integral clássico vem servindo de base pra muita tecnologia. Da primeira locomotiva, passando pelo telefone, rádio, cinema, tv, carro, avião, computador e chegando na internet e etc.. Sem contar a matemática pós física quântica, todas as aplicações em química, biologia, economia e por aí vai. Sei lá, existe um zilhão de aplicações.

Porém, há também o ponto de vista filosófico das matemáticas. E desse viés, qualquer tipo de matemática se encontra necessariamente do lado dualista da filosofia. Ou seja, do lado que tem como premissa a separação, independência e sobreposição do mundo das ideias em relação ao mundo corpóreo. Em outras palavras, o dualismo assume que o pensamento, a imaginação, o espírito, são autônomos em relação ao corpo, à matéria, ao átomo. Sócrates e Platão foram, talvez, os grandes responsáveis por fundamentar as categorias éticas e morais derivadas desse princípio.

Na mesma panela estão todas as estruturas religiosas do pensamento. Por exemplo, se você vive de acordo com os mandamentos de algum livro sagrado, você está no mesmo saco. Se você vive de acordo com a teoria revolucionária de uma sociedade sem classes, você está no mesmo balaio. Se você vive de acordo com o segredo da lei do retorno magnético do cosmo ou, enfim, se você utiliza qualquer outro tipo de parafernália ideológica para decidir qual será o seu próximo passo, então você está no mesmo terreno. O terreno que tem o ideal como ponto supremo.

E é precisamente por viver nesse universo que as matemáticas parecem deixar em segundo plano as condições mais fundamentais para os seres humanos serem felizes: que são as possibilidades de viver plenamente os desejos, os afetos, as inclinações, as pulsões, o instinto, as paixões que o corpo oferece instante a instante. Aqui se encaixam todos os tipos de filosofia dualista. Tudo o que você ouviu falar sobre Sócrates, Platão, Aristósteles, Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Lutero, Voltaire, Rousseau, Descartes, Kant, Marx e etc. Alguns mais sofisticados que os outros. Porém todos bebem a água da mesma fonte, a saber, a da ideia [imutável e universal] superior e autônoma aos desejos.

Viver acreditando que a matemática [ou muito mais geralmente, uma filosofia dualista] é a linguagem da natureza do universo, ou que ela pode explicar todas as coisas, ou que ela sirva de critério razoável para se formar juízos de valores, é negar a nossa condição primeira de animal, é acreditar que existe uma fórmula para a vida, é negar o corpo em troca da ideia; é viver num mundo imaginário acreditando ser o mundo real. Enfim, é negar o coração em troca da alma, é trocar a terra por um céu indemonstrável. É estirpar, amputar, matar antecipadamente os desejos.

O que pode ser mais decadente?

3 comentários

  1. Olá,

    Concordo, porém a matemática pode se apropriar de outros princípios para formalizar outras formas de pensar não dualistas. Os conceitos de igualdade e pertinência podem ser flexibilizados (teoria de conjuntos Fuzzy, por exemplo).

    Abraços,
    Alexandre Patriota.

    Curtir

    1. Olá, Alexandre,

      Escrevei o texto pensando nas matemáticas das lógicas clássicas mesmo. Como um leigo no assunto, vejo a lógica Fuzzy, em seu sentido estrito, como uma lógica simbólica com uma noção comparativa da verdade desenvolvida totalmente no espírito da lógica clássica (sintaxe, semântica, axiomatização, a dedução de preservação da verdade, integridade, etc .; tanto proposicional quanto lógica de predicados). Não consigo ver o porquê que uma matemática advinda dessa lógica não seria dualista [na medida em que pressupoe a sobreposição da ideia à matéria]. Por gentileza, sinta-se livre para me corrigir. Sou um aprendiz nesse tipo de discussão.

      Abraço,
      Paulo.

      Curtir

      1. Oi Paulo,

        obrigado pela resposta. Creio que podemos sempre pensar a lógica como um sistema formal para derivar resultados válidos. Como você sabe, um resultado válido é obtido à partir de premissas consideradas válidas e, após executadas apenas regras permitidas pelo sistema, derivam-se consequências. Estas consequências são resultados válidos dentre do sistema formal utilizado. Na maneira que eu vejo, o resultado é válido de acordo com algum sistema formal, não tem necessariamente um valor “verdade” em um sentido ontológico.

        A meu ver, sistemas formais só formalizam o pensamento, impondo regras para serem aplicadas sistematicamente. Nada nos impede de criar outro sistema formal para derivar outros resultados válidos de acordo com esse novo sistema. O sistema MIU proposto por Hofstadter é bem interessante, os teoremas desse sistema nada tem a ver com verdades, são apenas resultados válidos dentro daquele sistema (no sentido em que foram derivados usando apenas as regras permitidas do sistema).

        Uma vez entendido que a linguagem humana é humana, e que quaisquer sistemas formais estão limitados pelo nosso universo semântico, não vejo como considerar seriamente a que lógica pode atingir uma verdade única, última, ideal, supra-terrena, comum a todos, etc.

        Curtir

Deixe um comentário