Vivo

O último pito
folhas verdes na janela
sacrifício nos ouvidos
música sem fim
notas abertas
ondas sem praia
apenas
ondas
e eu sem saber delas
sem saber nada
traía a mim
acreditava no contínuo
ignorava o vazio
e prendia-me nas coisas
nos próprios pensamentos
e não vivia
subvivia
escravo daquilo que não era
das imagens que me perseguiam
das ideias de realidade
do contentar-me com o que não era
da palavra insistente
que mal se fazia
logo pretendia a razão
cheia de vontades rasas

Se lhe cuspia a face
colocava-me de castigo
por semanas, meses talvez
de cama
de cortinas fechadas
sem luz
no silêncio
da tormenta do mundo
e das sombras da caverna

Se buscava a janela
me cortava as pernas
esfolava a carne
e a sangue mostrava supremacia

Mas um dia retornei
caí do lastro seguro
e rastejei ao fim
ao chão do lado de fora

As pernas que me faltavam
em gritos de alívio
mão a mão pelo sítio
alcançaram a mureta

O sol cegava
tal a escuridão do quarto

Uma última nota
um último vento na pele
um último lapso de irrealidade
um último grito
e um tronco
uma cabeça
e braços como asas
todos em conjunto
unidos num
vivos pela primeira vez
inverteram as leis
puseram-se a voar
e abandonaram a razão
sozinha
na mesma cama vazia
do quarto vazio
que os tinha aprisionado

E o voo foi eterno
dentro do instante

E num fim de tarde
um amontoado de gente
em volta de um corpo sem pernas
tentando explicar aquilo que nada mais era
aquilo que deixara de ser
e que pela primeira vez
se encontrava vivo

Em seu fim
afinal
vivo

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